21.8.08

Rótulos

"Pessoas não são embalagens", já dizia um mendigo com quem cruzei outro dia na rua. Ele gritava isso aos quatro cantos quando chamaram ele de mendigo e ele ficou reclamando do ato de rotular pessoas. Tenho um especial apreço por moradores de rua, herança de quando eu trabalhava em uma ONG que cuidava deles, e esse apreço é mais especial ainda quando se trata de moradores de rua filósofos. Isso é acentuado ainda mais quando se trata de uma pessoa (como eu) que tem por hábito ter small chats sem muita necessidade de um mote introdutório. E pode ser piorado agora que vivo de andar a pé - porque as interações aumentam potencialmente quando seus pés são seu meio de transporte único. Pois bem. Não é da minha conversa com o morador de rua que vou falar hoje.


Hoje conversei com um amigo que me disse que eu era uma "aventureira inspiradora", porque viajei sozinha de mochila por um mês, e porque tinha decidido mudar minha trajetória profissional no final do ano passado. E quando ele me disse isso, eu fiquei pensando como é engraçado as imagens que as pessoas têm da gente, e que muitas vezes não têm nada a ver com a forma com a qual a gente realmente se vê.


E daí comecei a pensar em tudo que já ouvi das pessoas com relação à minha pessoa. Foi uma viagem deliciosa.


Minha avó me chama de "neta mais velha", e isso eu realmente sou - com o detalhe que ela enche a boca e os olhos de orgulho na hora de falar isso.
A sociedade de Foz do Iguaçu, na figura do irmão do amigo do amigo, disse de mim "uma aberração" - porque eu viajei quatro dias sozinha com um amigo que não era meu namorado, dividindo quarto e cama com ele em um hotel (mesmo que isso não tenha significado nada a mais além da nossa amizade), deixando um affair sozinho aqui em São Paulo (e me ligando desesperadamente todos os dias da viagem).
Minha amiga de infância diz que eu sou "uma das pessoas mais cultas" que ela conhece, no que eu tendo a discordar fortemente, sem falsa modéstia.
Meus ex-co-workers me chamavam de "Pelotita de Fuego" (como um rótulo e não como um apelido), pelas bagunças e risadas e happy hours.
Meus companheiros de trabalho atuais (e olha que só faz quinze dias) dizem que eu tenho "um parafuso a menos" (e eu acho cedo demais para eles saírem por aí falando isso).
Meu irmão diz que eu sou uma "patricinha tucana hipócrita". O lance é que ele não verbaliza isso nunca - mas diz em olhares e em atitudes de repreensão.
Meu professor de yoga fala que eu sou "serelepe demais da conta". Porque, óbvio, nunca cheguei muito perto do desapego.
Um disse outro dia que eu sou uma "Amélia com conteúdo", e outro dizia em um passado não distante mas muito remoto que eu sou "uma vanguardista independente que eu não sei se sei bancar". Não soube mesmo.
Minha mãe adora falar que eu sou "a pessoas mais bagunceira do mundo". Eu concordo até o bagunceira, já o do mundo eu não concordo não.
Minha terapeuta não me rotula: eu não sou borderliner, não sou maníaco-depressiva, não tenho traços de suicida, não tenho síndrome do pânico, não tenho dupla personalidade, não sou bipolar, não sou portadora do transtorno-obsessivo-compulsivo, etc.
Uma amigona fala que eu sou "simplesmente necessária".
Outra fala que eu sou "a agenda mais ocupada do planeta terra". Já fui, já fui...
Um amigo ultra próximo diz que eu sou "um clássico", tal qual uma pianista em um trio de jazz na New Orleans dos anos 30. Adoro ser os "clássicos" que ele inventa...
Muitos me conhecem por "Flammes", e isso era o rótulo sinônimo da boa e velha agitadora de encontros, viagens, baladas, sinônimo da "chama que nunca apaga", sinônimo da solteira e baladeira inveterada que algum dia eu fui.
Alguns ainda me chamam de "Flammes", sem que isso seja atrelado à imagem da solteira e baladeira inveterada - mas aí é menos um rótulo e mais um apelido.
A de Nova York me chama de Flammes: mas ela inventou o apelido e ajudou a formar o rótulo em volta dele. Diz ela: "testemunhei o nascimento de um mito".
Meu amigo que virou juiz fala que eu sou "burning Rome", mas porque pelo rótulo dele eu sou o sorriso que ilumina. Carinhoso isso.
Uma querida do mundo disse que eu sou "o equivalente humano ao Panda Po", rótulo que eu acho gostoso e divertido.
A mulher que sentou do meu lado no avião indo para Buenos Aires me rotulou "vulgar" por ser uma mulher viajando sozinha de mochila.
Um grupo de pessoas me chama de "escorpiana", assim como a outras duas pessoas do mesmo grupo, não só pelo meu signo do zodíaco como também por ser a personalização de alguns rótulos que acompanham esse signo.
Meus primos por parte de pai adoram falar que eu sou uma "perdida" nesse mundo.
E meu pai todos os dias insiste que eu sou "uma causa perdida" quando me vê fumando meu primeiro cigarro do dia às onze da noite.
Meu ortodontista adorava dizer que eu sou "filha de dentista", coisa que realmente sou, mas ele estava se referindo àquela dentição bizarra que eu tinha e que me fez usar 11 anos de aparelho.
Minha prima-amiga-irmã me chama de "prima-amiga-irmã" e eu adoro.
Um amigo que mora longe adora me falar que eu sou "as saudades mais gostosas" que ele já sentiu. Me sinto honrada com isso.

E eu com tudo isso?
Eu sei lá.
Tendo a concordar com o morador de rua, que seres humanos não são embalagens.
Mas no final das contas preciso confessar que me divirto.
E que deep down, não me encontro em nenhum dos rótulos que me deram de presente - mas se isso for uma crise existencial, só vou saber daqui um tempo, porque hoje em dia não é.

ps.: É engraçado ver como pessoas que me conheceram exercendo os mesmos papéis (amigos, amigas, companheiros, familiares) têm impressões tão diferentes de mim - por um lado, pelo jeito que eu me portei com cada um deles; e por outro, pelo jeito, personalidade, história, de cada um. Isso daria um belo tratado junguiano sobre as máscaras que a gente veste ao exercer nossos papéis.

3 comentários:

Anônimo disse...

Houve aquele que a chamou de Flor.

Marix Flammes, Nina. disse...

Flor como rótulo ou como apelido?

Fernanda Bello disse...

Se rótulos são para geléias você é uma geléia deliciosa! Pois escreve deliciosamente!!! Beijo!