5.4.09

Avenida Dropsie

OU: a vida na cidade grande

Sexta feira, 18.40.
Ainda estávamos no escritório, e não éramos um número pequeno.
A peça começaria às 20hrs, em uma distância de um confortável caminho a pé.
Antes disso, comeríamos uma coxa-creme na Livraria lá embaixo no térreo do nosso prédio que tem um café delicioso cheio de guloseimas que compensam.
Eu desci antes que ele, para passear na Livraria, porque ele ainda estava em reunião e atolado no relatório. Íamos nos encontrar na Livraria em pouco tempo, onde comeríamos a coxa-creme e seguiríamos a pé ao teatro (eu, mesmo mancando, queria andar).

Sexta feira, 19.30.
O teatro começaria em meia hora.
Eu já tinha entendido que não daria tempo de comermos a coxa-creme.
Subi de novo ao escritório. Muitas pessoas ainda estavam lá.
Ele, ainda em reunião, fazendo o relatório.
Nem cheguei perto, porque ele não demonstrou nenhum sinal de abertura para que eu interrompesse a reunião.
Sentei ao lado da amiga e ficamos batendo um papo.
O marido dela já ligava, para saber a que horas ela chegaria em casa - era sexta, afinal das contas!

Sexta feira, 19.45.
Decidi interromper a reunião: "só quero uma opinião real se vai rolar o teatro ou não. Começa em 15"
Ele disse que já estava indo, e dito e feito.
Não dava nem tempo da coxa-creme, e se decidissemos ir a pé perderíamos a peça.
Comemos um pacotinho de Club Social cada um, para andar apenas uma estação de metrô - da Consolação para o Trianon-Masp, onde descemos na frente da FIESP e entramos no teatro rápido.
Para nenhum dos dois deu tempo para o primeiro cigarro do dia.

Sexta feira, 20.00.
Avenida Dropsie.
Teatro Popular do Sesi.
Felipe Hirsch dirige e adapta o texto de Will Eisner com o cenário incrível da Daniela Thomas. É a reestréia da peça, que já tinha estado em cartaz em 2005, mas que agora volta para comemorar os 15 anos da Sutil Companhia de Teatro. Guilherme Weber, André Frateschi, e outros atuam magistralmente, enquanto Gianfrancesco Guarnieri empresta sua voz ao narrador.

Das quase duas horas de peça, chove por 15 minutos ininterruptamente.
O cenário que é o prédio que é a avenida que são as janelas e as escadas onde todos sobem e descem e falar e ficam mudos é algo impressionante. E a peça é muito mais sua trilha sonora e a expressão corporal dos atores do que diálogos e narrativas lineares. E impressiona muito. Todas as histórias picadas e juntas ao mesmo tempo. A trilha sonora jazzística impecável. Não sei onde ficava a Avenida Dropsie do Eisner, mas aqui ela se encaixava muito bem com São Paulo.

"Avenida Dropsie, porém, trata da solidão coletiva(...). Dropsie fala das pessoas das grandes cidades, que não olham nos olhos de ninguém quando andam na rua, que não são capazes de sentir nada quando passam por alguém rastejando no chão, que parecem cada uma viver um mundo totalmente particular, cuja redoma de vidro invisível o protege dos iguais. Também fala de seus sonhos, de sua poesia, das amizades. Humor e melancolia se alternam no espetáculo. É possível rir em um segundo, e chorar no seguinte. A Sutil, assim com Eisner, brinca com a emoção de seu público." (trecho retirado de http://www.screamyell.com.br/mais/dropsie.htm)

Todos muito humanos - a platéia, os atores, o autor. Enfim, a população de uma grande cidade que, mesmo que isolados em suas redomas, e segurando firmemente seus pertences junto ao corpo, e andando com pressa mesmo sem saber ao certo para onde está indo, é no final isso: humana, cheia de vida.

Saí da peça pensando nos que me criticam por ser tão loucamente paulistana, como se isso significasse um coração gelado e falta de algo humano em mim, como se ser paulistana fosse uma ofensa à espécie humana. Como se São Paulo e os paulistanos como um todo fossem, todos, uma ofensa e um obstáculo.
Ao mesmo tempo, descobri porque é que sou tão loucamente paulistana e porque não poderia deixar de ser: para além dessa selva de concreto que assusta a tantos, está a minha vida construída aqui. E gostar de São Paulo nesse caso não significa algo não-humano: muito pelo contrário, "humano, demasiado humano". Como se São Paulo e os paulistanos fossem, todos, essa bagunça humana intensa de vida.
"Só" isso.
É uma cidade que oferece uma rotina de adaptação feroz a tudo o que a cidade tem de hostil (não são poucas coisas) e de paixão absoluta a tudo o que a cidade tem de maravilhoso (não são poucas coisas).
Uma cidade sem meios-termos, e que não dá para ter preguiça de mergulhar nela, nem de resistir a ela. É isso. Aceite sem se incomodar, adapte-se para sobreviver, e seja muito bem-vindo.

Sexta feira, 22.00.
Acendemos, finalmente, nosso primeiro cigarro do dia. Atravessamos a Paulista para pegar um táxi do lado de lá. Eu, mancando, andando devagar, fiz com que párassemos na "ilha" no meio da avenida entre um farol e outro.
Uma ilha deserta, só com nós dois lá.
De um lado e de outro, carros, tantos, rápidos, barulhentos, buzinam, correm, música alta, vento em uma direção, vento em outra.
Entramos no táxi: "Melo Alves com Tietê, por favor". Perto da Consolação, na Paulista, trânsito. É uma cidade com claros sinais de esgotamento: trânsito sem nenhum motivo aparente às 22hrs de uma sexta é quase insuportável.

Sexta feira, 22.20.
Chegamos e sentamos.
Primeira coisa, ação de urgência, pedimos um chopp.
Segunda coisa, acendemos outro cigarro.
Terceira coisa, pedimos o cardápio.
Quarta coisa, pedimos as fritas.
Quinta coisa, pedimos o sanduba.
Pronto. A festa estava armada.
Papo vai, papo vem, papo bom, o trabalho (comum),
(mais um chopp) a vida, os amigos, as conspirações,
(mais um chopp) a peça, São Paulo, os planos pro final de semana,
(mais um chopp) os planos pra Páscoa, os planos pra Tiradentes,
(mais um chopp) os planos pra vida (a saideira e a conta).

Sexta feira, 23.50.
"Corre lá que o metrô ainda está aberto!"
Ele saiu correndo do táxi, eu segui até em casa.
Capotei pesado, depois de uma semana ultra intensa.
A vida na cidade grande.

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